Dom João Batista Corrêa Nery †
1º Bispo de Campinas - 1908 a 1920 - 1º Bispo de Vitória do Espírito Santo, ES - 1º Bispo de Pouso Alegre, MG
Em 6 de outubro deste ano, comemora-se o sesquicentenário do nascimento de Dom João Batista Corrêa Nery. Primeiro bispo das Dioceses do Espírito Santo, Pouso Alegre e Campinas, sua cidade natal. Filho de Benedicto Corrêa de Moraes e de Maria do Carmo Nery, João Batista Corrêa Nery nasceu em 6 de outubro de 1863, na Rua Conceição, antiga Rua Formosa, em Campinas. Foi batizado no dia 15 de outubro do mesmo ano, como se atesta do registro:
“Aos dias quinze de outubro de mil oitocentos e sessenta e três, nesta Matriz de Campinas, baptizei e puz os Santos Óleos a João de idade de nove dias, filho legitimo de Benedicto Corrêa de Moraes e Maria do Carmo Nery. Padrinhos: Manoel Benedicto Corrêa e Maria Tereza de Moraes, todos desta Parochia. O Coadjutor Vigário interino, Sabato Antonio Deluca.”[1]
Fez seus estudos na cidade natal e ingressou no seminário de São Paulo em 1880. Jovem, aos 17 anos de idade, revelou seus dotes pelas artes cênicas, escrevendo o drama “Pai e Filho”. A sensibilidade artística, especialmente o teatro, o distinguiu durante toda a vida e fez dele, já nos tempos de seminário, um grande orador.
Foi ordenado presbítero por Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, então Bispo de São Paulo, em 11 de abril de 1886. Após lecionar no Seminário por alguns meses, foi nomeado Vigário Colado, por rubrica de Sua Alteza a Princesa Imperial Regente (Princesa Isabel), da Matriz Velha, que nessa época era igreja paroquial de Nossa Senhora do Carmo de Santa Cruz (atual Paróquia Nossa Senhora do Carmo, berço religioso da cidade
[2]) onde permaneceu de 1887 a 1894. Em 1894 quando foi nomeado Vigário Colado da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição em substituição do então vigário Cipião Ferreira Goulart. Durante seu paroquiato, Campinas foi assolada pela febre amarela e o referido padre empenhou-se pelo amparo dos órfãos dessa terrível epidemia que colocou de joelhos a “Princesa d’Oeste”, no fim do século XIX. Diante desse desafio, planejou a realização de um estabelecimento para abrigar os órfãos e educá-los. Nasceu assim, de seu ímpeto caritativo, o Liceu de Artes e Ofícios, posteriormente confiado aos cuidados dos Padres Salesianos.
Em 28 de agosto de 1896 foi eleito o primeiro Bispo da Diocese do Espírito Santo, pelo Papa Leão XIII
[3]. Sua Sagração Episcopal aconteceu em 1 de Novembro de 1896 na capela do Colégio Pio Latino Americano, em Roma, pelo Cardeal Jerônimo Maria Gotti, que fora Internúncio no Brasil. Fez o seu ingresso solene na catedral de Vitória em 23 de maio de 1897. No Espírito Santo Dom Nery empenhou-se em criar o patrimônio do novo Bispado, especialmente a Caixa Diocesana, pedindo donativos aos fiéis e até mesmo a outras Dioceses, no contexto em que a Igreja no Brasil acabava de ver-se livre das rédeas cerceadoras do Padroado. As visitas pastorais pela Diocese e o empenho social, especialmente junto aos indígenas do Espírito Santo, distinguiram o episcopado de Dom Nery. Alegando precisar de um clima que melhor favorecesse sua saúde, conseguiu sua transferência para a Diocese de Pouso Alegre em 18 de maio de 1901. A posse na recém criada Diocese, aconteceu em 21 de julho do mesmo ano. Também em Pouso Alegre foi preciso que o bispo se empenhasse pela constituição do patrimônio da nova Diocese. Ali Dom Nery construiu principalmente o Palácio Episcopal, o Ginásio diocesano e o seminário.
Em junho de 1903, enquanto era bispo desta Diocese sul mineira, Dom Nery organizou uma visita do Núncio Apostólico, D. Julio Tonti, à sua Diocese, no intuito de se discutir a possibilidade da criação de uma Diocese em Campanha. A caminho de Pouso Alegre, o Núncio passou por Campinas onde foi recebido na estação ferroviária com grande festividade. Será o próprio D. Julio Tonti a redigir um relatório para a Santa Sé sobre sua excursão pelo Estado de São Paulo e sul de Minas Gerais. Eis suas impressões de Campinas:
“
(…) Dom João Batista Nery veio (a São Paulo) pessoalmente buscar-me para ser meu guia na visita à sua diocese. Partindo de São Paulo para chegar a Pouso Alegre passa-se pela cidade de Campinas que é a segunda do Estado de São Paulo, com belas vias largas e espaçosas e rica de edifícios de arquitetura européia. A população chega a aproximadamente 40 mil habitantes. A cidade possui uma magnífica igreja que poderia servir de catedral. Possui também uma Academia de Ciências e Artes composta por pessoas notáveis pelo saber e erudição. As autoridades e o povo de Campinas, sabendo que o Representante Pontifício se dirigia a Pouso Alegre, insistiram com o dito Prelado que me servia de guia, para que eu fizesse a eles uma visita. O acolhimento que me fizeram mostrou o quanto eram merecedores da graça que imploravam. Na estação de Campinas agrupou-se uma grande parte da população composta de todas as classes e condições. Calculou-se entre 12 a 15 mil pessoas. O certo é que a multidão de tal modo se comprimia que foi necessário que dois oficiais de polícia se colocassem ao meu lado para abrirem continuamente a mim o caminho da estação até a residência dos Missionários Espanhóis do Coração de Maria onde eu deveria me hospedar. Para satisfazer os anseios do povo percorri a pé o não curto trajeto; e a população me acompanhou sempre fazendo ecoar contínuos “vivas” à Santa Sé e ao Santo Padre. (…) Os fiéis de Campinas desejam ardentemente que sua cidade se torne sede de uma nova diocese. Campinas teria certamente precedência em relação a qualquer outra cidade da atual Diocese de São Paulo, com condições adequadas a esse objetivo, porém é relativamente muito próxima à cidade de São Paulo, fato que levaria a considerá-la menos adequada para sede de uma nova Diocese (…)[4]”.
Dom Nery era um dos que defendiam, já nesse período, a elevação de Campinas à condição de Diocese. A visita do Núncio alimentou esperanças e o Bispo de Pouso Alegre incentivou a constituição de uma comissão responsável por angariar o patrimônio para um futuro bispado. Tal comissão contou com nomes influentes da sociedade e da política local, e foi liderada pelo pároco da Paróquia de Santa Cruz (Matriz Velha), na época, o Padre Francisco de Campos Barreto. Em 23 de novembro desse mesmo ano, os moradores de Campinas, representados por tal comissão, endereçaram um pedido formal ao Santo Padre o Papa Pio X, para que Campinas fosse constituída Diocese. A petição foi assinada por Francisco Olegário, Bento Quirino dos Santos, José Soriano de Souza Filho, João Batista Pinto de Toledo, Orosimbo Maia, Padre Francisco de Campos Barreto, dentre outros
[5].
Porém, o processo desencadeado por Campinas e que culminou com a criação de cinco novas dioceses no interior do Estado de São Paulo, foi complexo. A questão foi longamente discutida na Sagrada Congregação dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários (AA. EE. SS.), nos anos entre 1903 e 1908. Inicialmente pensava-se em criar uma única diocese no Oeste de São Paulo, de preferência mais para o interior do território. Embora Campinas apresentasse as condições para ser Diocese, sua localização representava um ponto de relutância. No período em que foi Núncio Apostólico Dom Alexandre Bavona, as discussões avançaram e chegou-se ao ousado projeto de elevação da capital a Arquidiocese e a constituição de cinco novas Dioceses, como sufragâneas na constituição de uma nova Província Eclesiástica em São Paulo. A bula data de 7 de junho de 1908, intitulada Dioecesium nimiam amplitudinem
[6] (A grande extensão das Dioceses). As dioceses criadas foram: Campinas, Botucatu, Ribeirão Preto, Taubaté e São Carlos do Pinhal. Sem dúvidas que a participação de Dom Nery no processo que culminou com a elevação de Campinas a Diocese foi determinante. Nomeado para assumir a nova circunscrição eclesiástica, voltando para sua terra natal como Prelado diocesano, ele assumiu definitivamente a função de primeiro bispo de Campinas em 1 de novembro de 1908.
Em Campinas é justo ressaltar duas marcas características do episcopado de Dom João Nery: o empenho pela consolidação de uma cultura católica e as obras sociais. No tempo de seu episcopado em Campinas, escreveu diversas cartas pastorais tocando em problemas como o eleitorado católico e o empenho social. Após a carta pastoral com a qual saudou seus diocesanos, verdadeiro programa pastoral de seu episcopado em Campinas, em 1909 escreveu outras duas cartas, anunciando sua primeira visita pelas paróquias da Diocese e instituindo a obra do Óbolo Diocesano. Em 1911, ano de seu jubileu de prata sacerdotal, anunciou mediante carta pastoral, a realização do Primeiro Congresso Católico de Campinas, voltado à discussão da atuação da Igreja Católica nas diversas realidades da cultura e da sociedade. Em 1913 escreveu uma importante carta intitulada “sobre a atuação do clero desta diocese nos tempos atuais” manifestando uma vez mais sua preocupação pastoral em campo social, especialmente junto ao operariado. Suas intuições, em muitos pontos, expressando os desafios sociais e o pensamento social católico oriundo dos ensinamentos de Leão XIII, são lúcidos para aquele momento e continuam a sê-lo em muitos aspectos hoje, salvaguardada a eclesiologia, a auto compreensão da Igreja de então como sociedade perfeita, chamando o clero antes de tudo a uma atuação coerente com os fins do sacerdócio para garantir a formação humana e cristã, salvaguardando os valores cristãos diante dos riscos do pensamento socialista:
“
Nenhuma questão apaixona tanto os ânimos na hora presente como a chamada questão social, e embora os governos se preocupem com alianças e tratados que lhes garantam expansões e hegemonias, é um fato que o povo, à grande massa anônima se agita e se revolve mais diante de um novo projeto de legislação social, de qualquer coisa que concorra para a reivindicação de seus direitos, para a melhoria do trabalho, para mais equitativa harmonia entre ele e o capital. (…) entre todas as obras sociais, cumpre animar sobretudo a da formação e da educação da consciência política dos católicos e favorecer a criação das Ligas Eleitorais, às quais poderão pertencer católicos de todos os partidos existentes ou por existir”
[7].
Partindo de tais preocupações, Dom Nery fundou uma Escola Agrícola junto ao Liceu Salesiano, o Externato São João e a Creche Bento Quirino, junto à Igreja de São Benedito. Nesse sentido ajudou a cidade de Campinas não somente no aspecto religioso mas também social, no campo do amparo aos pobres e da educação.
Em 1918 a gripe espanhola assolou a cidade, vitimando muitos campineiros. Como fizera nos tempos da febre amarela, empenhou-se ele, agora como bispo de sua cidade natal, a socorrer a população com a distribuição de leite e alimentos às famílias carentes e disponibilizando os espaços do Ginásio Diocesano e as próprias dependências do Palácio Episcopal, bem como outros recursos do patrimônio da Diocese, para improvisar hospitais destinados ao socorro dos doentes. Ele próprio adoeceu com a gripe espanhola que porém não ceifou sua vida
[8]. O bispo acarretou à Diocese grandes dívidas nessa ocasião, que foram sanadas somente durante o episcopado de seu sucessor, Dom Francisco de Campos Barreto. Foi o preço de uma caridade desmedida e tanto a Igreja quanto a sociedade lhe são devedoras e reconhecidas.
Dom Nery morreu aos 57 anos, vítima de um tumor no fígado, em 1° de fevereiro de 1920. Foi sepultado na Catedral de Campinas e, em 1923, seus restos mortais foram transladados para a cripta construída na mesma igreja. Sua memória foi imortalizada na praça da catedral com um monumento em sua homenagem, obra de Fernando Frick, inaugurado no ano de 1924.
Referências:
Diocese de Campinas. D. João Nery. Saudosa homenagem à sua santa memória . No 34° aniversário de seu fecundo sacerdócio. São Paulo, Oficinas graphicas Cardozo Filho & C. 1920.
Martins, J. P. Basílica do Carmo. Historia de fé no coração de Campinas. Campinas, Editora Komedi 2010.
Nery, J. B. C. Carta Pastoral sobre a atuação do clero desta diocese nos tempos atuais. Campinas, Tip. Casa Mascotte 1913.
Pieta, Z. Hierarchia Catholica et recentioris Aevi. A pontificatu Pii PP X (1903) usque ad pontificatum Benedicti PP XV (1922), vol. IX, Padova, Messaggero di Sant’Antonio 2002.
VV. AA. Arquidiocese de Campinas: subsídios para a sua história. Campinas, Editora Komedi 2004. p. 588.
Padre Rafael Capelato
rafaelcapelato@gmail.com
[1] Arquivo da Cúria Metropolitana de Campinas. Livro de assentamentos de Baptismo da Parochia de Nossa Senhora da Conceição de Campinas, N° 9, fl. 139.
[2] Importante recordar que até o ano de 1870 a Matriz da primeira paróquia de Campinas (Nossa Senhora da Conceição) foi a chamada Matriz Velha, atual igreja de Nossa Senhora do Carmo. Em 1870 foi criada a paróquia de Nossa Senhora do Carmo de Santa Cruz na Matriz Velha e a Matriz Nova (atual Catedral Metropolitana de Campinas), em processo de construção, passou a sediar a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Cf. Martins, J. P. Basílica do Carmo.História de fé no coração de Campinas. Campinas, Komedi 2010. pp. 68-82.
[3] O processo canônico que culminou na nomeação episcopal de Dom João Nery, pode ser consultado no Arquivo Secreto Vaticano (ASV): Città del Vaticano, ASV, Arch. Nunz. Brasile, b. 80, fasc. 390, ff. 42-73.
[4] Città del Vaticano, ASV, Arch. Nunz. Brasile, b. 111, Fasc. 550, ff. 177v-178v.
[5] Città del Vaticano, S. RR. SS., AA. EE. SS., Brasile, Pos. 640, Fasc. 116, ff. 6r-9v.
[6] Città del Vaticano, ASV, Arch. Consist., Congr. Consist. Acta, 1908 II. Cf. ainda: Pieta, Z. Hierarchia Catholica, vol. IX, pp. 108. 291.
[7] Nery, J. B. C. Carta Pastoral sobre a atuação do clero desta diocese nos tempos atuais. Campinas, Tip. Casa Mascotte 1913. pp. 6.17.
[8] VV. AA. Arquidiocese de Campinas: subsídios para a sua historia. Campinas, Editora Komedi 2004. p. 588.